Quase voar
Naquele dia, sabia que tudo seria diferente. Acordara com vontade de mudar e mudaria. Começou por tomar o café bem doce, comer todos os pães e geléias que sempre desdenhava e vestir-se com roupas há muito guardadas numa combinação vigorosa e pouco ortodoxa de cores. Na portaria do prédio passou reto pelo porteiro que propositalmente atrasava a entrega de sua correspondência e viu de soslaio sua surpresa pela ausência do bom dia costumeiro. Sentou-se ao volante do carro e abriu todos os vidros. Que o vento entrasse, que a poeira sujasse todos os bancos, não ligaria nem mesmo se aquela goteira do viaduto ainda estivesse pingando e molhasse o estofamento de couro. Dirigiu como se não houvessem leis nem limites, muito menos regras. Costurou, alinhavou uma corrida de dar gosto a qualquer corredor de fórmula 1. Por que nunca havia feito isto? Era disso que a vida devia ser alimentada, de pequenos prazeres, mesmo que proibidos. Principalmente os proibidos.
Já na periferia, diminuiu a velocidade para apreciar a vista da cidade ao longe. Seus prédios, a luz do sol fazendo força para penetrar a poluição e atingir a copa das árvores. Brincou com a idéia do sol tendo filhotes poluidos e riu, riu com gosto, deixando o corpo se sacudir numa gargalhada estrondosa. Mas todo riso traz um choro oculto e depois da explosão veio a implosão do choro há anos contido. Implodiu-se até sobrar apenas a idéia fixa que lhe acometera ao acordar: hoje tudo seria diferente.
Reconheceu a região e percebeu que estava perto de seu destino. Relembrou mentalmente o caminho, as curvas e a reta. Sabia que naquela reta poderia correr como nunca havia sonhado e correu. Pisou no acelerador cada vez com mais força, sentindo um prazer enorme ao ver o automóvel ganhar velocidade constantemente. Mudou as marchas com a precisão de um maestro sentindo o vento passar como música. Avistou a reta e imprimiu maior velocidade ao veículo, saboreando a ousadia como quem saboreia um sorvete de cereja com calda de chocolate meio amargo. Não pensava mais, agora era puro sentimento e sensações. Ah, se soubesse antes como seria bom, já teria feito isso há mais tempo. Segurou firme o volante controlando o carro a quase duzentos por hora curtindo a sensação de quase voar. Quando a reta chegou ao final, seu último pensamento foi o de que era uma pena que todos aqueles que sempre o consideraram tão certinho não estivessem alí para ver quão grande era sua felicidade.
Voou como uma águia que plana em busca de sua presa. Caiu como o sol poente, numa explosão de cores e calores.
Comentários